terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Ne me quitte pas

Pedro e Ana se conheceram no jardim de infância. Não havia certeza ou lembrança de quem tinha iniciado relações primeiro, ou ainda porque um tinha interessado ao outro em primeiro lugar. Eram amigos desde sempre então, uma constante na vida que mudava a cada dia e ainda assim continuava a mesma, bem na época em que o tempo se estende infinitamente e uma hora pode durar três dias.
Portanto tinham (mais do que) uma vida inteira juntos.
Pedro era daqueles meninos que se mantêm na maior parte do tempo pra si mesmo, gostava de desenhar e de quebra cabeças, era gentil e educado e só se envolvia em maiores confusões quando jogava futebol, atividade que valorizava muito. Só assim era visto perdendo a cabeça, suas sobrancelhas bem juntas, o rosto avermelhado e a voz rouca de quem não está acostumado a falar muito alto. Assim que ele ficou velho o suficiente, tal atitude costumava ser considerada um tanto atraente entre as garotas que o conheciam.
Não era especialmente brilhante, nem especialmente idiota, portanto era deixado em paz na maior parte do tempo. Tinha o riso fácil, mas ele só se alargava o suficiente para formar covinhas quando sua amiga contava uma piada especialmente ruim.
Ana na verdade tinha um excelente senso de humor, mas a muito tinha aprendido que quanto pior fosse a piada mais Pedro se divertia. Vivia com o cabelo bagunçado e o rosto sujo de lama, andava sempre cercada por crianças, de sua idade, mais novas e até mais velhas, porque era um desses ímãs em forma de gente que todo mundo já se deparou alguma vez durante a vida.
Era vista sempre com uma goma de mascar na boca e era muito propensa a usar macacões e calças rasgadas nos joelhos, pelo uso. Ainda assim, era dada a introspecções e sua atividade favorita era ler um livro apoiada nas costas de Pedro. Ela se divertia quando estava cercada por seus súditos e escalava árvores, nadava em rios ou saía em aventuras para salvar o mundo. Mas trocaria tudo isso pelas horas em silêncio que passava na loja do pai de Pedro, atrás do balcão, observando a clientela que mal podia diferenciar uma chave de fenda de uma chave Philiphs.
Os dois se ocupavam desmontando e montando de novo rádios, televisões e eventualmente até um ou dois computadores. Pedro se interessava por modelismo e embora não fosse algo em que ela fosse exatamente capaz (porque mexer com miudezas nunca fora seu forte), se contentava em observá-lo trabalhar, enquanto ouvia música ou jogava paciência. Ás vezes tomavam o ônibus para o centro da cidade à procura de uma peça ou modelo novo e aproveitavam para ir no cinema e tomar sorvete. A primeira vez em que eles foram ver Billy Elliot Ana chorou tanto que ensopou a camisa dele. Se tornou o filme favorito de ambos. Eram dois melancólicos.
Ela começou a tocar piano aos 9 e o único que podia ir ver seus recitais era ele. Era uma das poucas oportunidades em que ela usava vestido e arrumava o cabelo. Era competente, mas nenhuma artista. Ainda assim ele costumava levar algumas flores pra ela. Uma vez tinha assistido um filme na televisão sobre uma concertista e visto a chuva de rosas que caiu sobre o palco no fim do espetáculo. Ele sempre aprendia rápido.
Em dias de tempestade costumavam se refugiar no quarto dela, ombro a ombro, ouvindo música dividindo um fone de ouvido, lendo revistas, as cabeças muito juntas. Comiam sanduíches de presunto com manteiga e tomavam chocolate quente com marshmallow, receita inventada por eles.
No dia em que Ana viu Pedro encostado na parede, sendo beijado por uma amiga dos dois ela sentiu como que afogando. A partir de então voltaram a andar de mãos dadas, hábito que haviam largado quando fizeram cinco anos.
Eles fumaram seu primeiro cigarro juntos. Ele tossiu o tempo todo e disse que nunca mais faria aquilo, enquanto ela manteve a pose até que seu estômago revirou e ela vomitou, sentido o tabaco no boca e no cheiro do cabelo.
Uma vez foram para praia (eles não eram velhos o suficiente pra ter carteira, mas já sabiam dirigir desde que conseguiam alcançar os pedais. Ela aprendeu primeiro), decididos a aprender a surfar. Eles nem chegaram perto de uma prancha. Foi a primeira vez que ficaram bêbados e infelizmente nenhum dos dois se lembraria da primeira vez que se beijaram.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Déssire

Basta um segundo e está tudo arruinado. Um segundo e a máscara cai, máscara essa que nem sabia existir. Por isso talvez tivesse sido tão eficiente, até aquele segundo.
É preciso usar toda a força de vontade para não atravessar a mesa e ataca-lo. E a frase, alguma coisa importante, com certeza, quase foi dita pela metade, por que por aquele segundo qualquer pensamento coerente havia evaporado e você simplesmente amaldiçoa mentalmente o fato de haver uma mesa entre vocês. Você imagina como conseguiu respirar de novo.

Sim, luxúria, é exatamente isso que te atingiu te deixou desnorteada, sem chão e com uma maldita mesa pela frente. Isso que te faz pensar o quanto ele é macio e quente, o quanto ele cheira bem, e meu Deus, você teve que lembrar agora dele saindo do banho, com o cabelo molhado e a toalha no pescoço, e como as mãos dele são bonitas, grandes e delicadas ao mesmo tempo, e você aposta que ele poderia tocar piano se quisesse, e você apenas quer mordê-las. E tudo isso por quê?
Ele é intocável, belo e intocável, como uma peça de museu. Não, melhor, porque ele te ama. Sim, ama como Galateia amou Pigmaleão, um amor por gratidão, por ele te-la criado. É parecido com vocês dois. Ele te ama por você cuidar dele e por acreditar nele e por sempre sorrir quando ele precisa. Você o ama por ele existir.
Amor? Sim, isso você nunca negou. Desde o momento em que ele sorriu a primeira vez, você o amou. Irônico, justamente você, que nunca acreditou em amor à primeira vista.

Mas tinha pensado que as coisas tinham se acalmado, uma coisa meio maternal, meio fraternal, meio alma-gêmea.
Claro que havia algo de mais. Esse empuxo que você sente em relação a ele não é normal. Você não costuma se importar com o que as outras pessoas pensam sobre você, mas tentar adivinhar o que ele está pensando é quase uma obsessão sua.
Era uma obesessão sua, porque agora não existe mais o tentar, você simplesmente sabe. E você, nesse segundo, com essa mesa, reza pra que não seja recíproco. Porque nada nunca foi recíproco entre vocês dois. Você ama ele mais, ele te suporta mais.
Mentira, a frustração é a mesma. Ele nunca sabe o que você quer e você sempre sabe o que ele quer e ele nunca quer você.
E agora ele deita na abençoada/maldita mesa. E não ajuda em nada o fato de que ele está sorrindo.
Você conhece a curva do sorriso dele, e isso te enche de medo, porque o que diabos quer dizer conhecer a curva do sorriso dele? Você não sabe e não se importa, apenas espera que ele conheça a curva do seu sorriso.
Você acha que sim, e você diz a si mesma que isso basta. Vamos ver quanto tempo essa mentira perdura.
Nunca sentiu desejo por alguém assim antes, duvida que algum dia irá sentir de novo.
Porque ele, em suas falhas é perfeito, e a perfeição é algo que só se encontra uma vez na vida. E você se torna feliz em saber que esse fato pertence só a você e ninguém mais. Ele pertence só a você e ninguém mais.
Isso te acalma, você olha pra baixo e lembra do seu papel. Tudo vai dar certo, é só não se afogar em seus olhos.